Tema 2 - FatiaMor
Assim que colocou a chave à porta sentiu um arrepio pela espinha. O seu sexto-sentido sempre fora apurado e raramente o deixava ficar mal. Ainda hesitou e pensou em recuar. Mas outros valores se levantavam e, a contragosto, arrepiado e a benzer-se, rodou a chave da forma mais silenciosa que conseguiu. A porta rangeu ligeiramente, deixando entrever a luz que brotava do lado de dentro. O corredor estava todo iluminado e havia roupa espalhada por todos os cantos, sem cerimónia ou pudor. Quem a envergasse antes, estava agora seguramente nu e sem qualquer hipótese de fugir à vergonha. Empurrou a porta com cuidado e transpôs a ombreira, sempre a olhar por cima do seu ombro, imaginando os ombros nus ao ver um soutien e camisolas mesmo aos seus pés. Um gato surgiu vindo da sala à direita e olhou-o, penetrante. Poderia ser um cão e não teria o mesmo impacto. Um gato preto, retinto, como aquele, era mau augúrio e noutros tempos serviria de desculpa para rodar nos calcanhares e retornar, por onde havia vindo. Um miado arrancou-o à crença supersticiosa. Pior seria que agora o ouvissem. Não só confirmava a sua crença, de que os gatos eram realmente fontes de azar, como teria que resolver outro problema, da pior maneira possível.
Um pequeno grito abafado ouviu-se pela casa. O ato estava consumado, ao menos, unilateralmente. Pela sua experiência, restava-lhe agora pouco tempo. Deu dois passos na direção do gato, que já estava em andamento, pressentindo que em breve haveria mais companhia. Não tardaria até que os respetivos donos de todas aquelas inertes peças de roupa estivessem de volta para as resgatar. Virou à esquerda, para a divisão mais escura, na esperança de não ser notado.
O gato resolveu enrolar-se nas pernas e miar com mais intensidade. Tentou enxotá-lo, fazendo um "shhh" baixinho, enquanto o empurrava. O gato tentava, com vigor, fazer oitos entre as suas pernas, ao ponto de o desequilibrar.
A verdade é que se, agora, tentasse recordar-se do que aconteceu, não seria fácil dar sentido à sequência de eventos. Os passos no corredor alertaram-no. Ou talvez tenha sido o miado agudo do gato, quando lhe pisou a pata, na tentativa vã do afastar, que criou a loucura imensa em que se viu enfiado. Facto foi, que ao pisar o gato este miou, espetou a garras, alguém gritou - ou terá sido ele? - passos ouviram-se no corredor, a precipitarem-se para a roupa - ou na sua direção? - até que se desequilibrou, acertou no interruptor, acendeu uma luz perfulgente e ali estavam todos: ele e ela nus, um gato a lamber a pata e ele, agarrado aos bicos de um fogão.
- Só queria dizer-lhes... - disse-lhes, enquanto tentava disfarçar a sua falta de jeito - que afinal havia outro.... - hesitou, olhou em todas as direções e disparou, - fogão!
Os corpos inertes caíram no chão, ao som de duas balas fulminantes e ele continuou, com o seu impulso obsessivo de quem não pode deixar uma ideia a meio: - Havia outro fogão, e eu gostaria muito que o vissem!