Tema #2 - FatiaMor
O barulho do estalo de Filomena chegou mais depressa ao córtex auditivo do que aos receptores da dor física.
Ouviu-o, claramente.
O choque abalou-o, como um sismo.
Havia algo que o incomodava naquela reacção, até ao momento, aparente e completamente despropositada.
Cogitou razões externas, porém nada se afigurava plausível. Pela razão deduziu que ele seria a causa desta dolorosa percepção de que estava acometido. Mas por mais que se esforçasse, a sua memória de trabalho teimava em não carregar informações explicativas. Talvez fosse algo que ele teria descartado, por não ser relevante! Mas era Filomena, tinha de ser relevante! Substituiu o seu desespero amnésico pela observação não participante.
Ela continuava ali à sua frente, com os seus pequenos olhos castanhos, marejados de tristeza, mas sagazes, com a raiva usada para o esbofetear. Olhava-o como se estudasse a sua cara sob o prenúncio de esta não corresponder à regra áurea. (Seria isso?, pensou.)
A sua boca entreabria-se ligeiramente, deixando perceber uma respiração ofegante, sofrida. Aquilo não tinha sido fácil para ela, também, mas Pedro retornou a reflectir sobre os motivos que tinham conduzido à bofetada.
“Não dizes nada?”, avançou Filomena, sabendo a resposta. Pedro remetia-se ao silêncio perturbador da expectativa. “Fala! Fala! FALAAAAA!”, determinava-lhe Filomena, num grito gutural, extraído da profundeza da sua dor. Deixou-se cair no chão aos seus pés, enquanto ele a olhava placidamente, condoído de compaixão. O amor indelével que lhe devotava certamente não teria sido suficiente para os proteger da situação em que se encontrava, da dor que ela trazia dentro de si. Queria abraçá-la, carregá-la nos seus braços como outrora, mas não podia.
Talvez devido aos gritos e soluços do choro compulsivo a que agora se entregava, várias pessoas foram até à sala onde eles continuavam a olhar-se, apenas.
Um homem, dos seus 50 anos, aproximou-se e levantou Filomena no ar com uma leveza estranha. Pedro não se lembrava de ela ser assim, tão frágil. O homem olhou-o com um misto de desdém e tristeza. Não há nada a fazer, Filomena. Tens de aceitar. O Pedro já não existe ali. Aquele corpo é apenas uma carcaça.
Filomena recusava-se a aceitar o diagnóstico do médico: Pedro, paralisado, afásico, quem sabe se consciente, AVC. Tudo coisas com que não se escreve amor, mas escravidão.
Amo-te, Pedro, disse-lhe antes de sair do quarto. Uma lágrima escorria-lhe pela face.
Pedro desejou que ela o esbofeteasse outra vez.
Tema da semana: O amor e um estalo
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