Tema #1 - FatiaMor
O despertador tocou. Novamente. André levantou a cabeça da almofada para encarar a realidade de 40 minutos de atraso para uma reunião com o seu diretor. Tentou, a custo, pegar no telemóvel para confirmar as horas, enquanto erguia o corpo do colchão.
Era visível o rasto de destruição da noite anterior, dentro e fora de si.
As molduras estilhaçadas no corredor; o tapete ostentava uma mancha ressequida, cujo cheiro lhe revolveu as entranhas. Os gritos da noite anterior deliam-lhe a voz, mesmo sem lhe ter dado uso. Estava só, e ao seu lado restava apenas a lembrança de que em tempos alguém dormira, naquela cama, com ele.
Sob esforço, arrastou-se até ao chuveiro. Abriu a torneira para um gotejar frio que o acertou nas costas! “Porra!”, vociferou. A garganta ressuscitava. A água, essa, teimou em sair fria e André resignou-se.
Desperto e envolto numa toalha, desconsoladamente húmida, dirigiu-se ao closet. A metade dela estava vazia. A sua, obsessivamente organizada. Tirou uma camisa desinteressadamente para só depois a ver rasgada. Tirou outra. Rasgada. E mais outra. Idem. Olhou para a cama, a perscrutar um possível corpo inerte no torpor onírico. Vã ilusão.
Com vigor, dirigiu-se à cómoda e tirou uma t-shirt. Intacta.
Os fatos, por sua vez, estavam habilmente queimados.
Pequenos e pacientes buracos foram feitos na zona das virilhas, deixando-o exposto ao ridículo.
Vestiu as calças de ganga, que pareciam ter escapado à fúria e voou para a garagem, sem comer ou beber.
Cruzou Lisboa à velocidade da luz, revendo mentalmente as desculpas esfarrapadas para apresentar à direção que o aguardava. A aliança queimava no dedo. Tirou-a toscamente e enraivecido, fazendo-a resvalar para o chão do carro. Estava perdida, por instantes, mas certamente viria a encontrá-la se necessário. Até ajudava a justificar tamanha loucura.
Encontrou um lugar, mesmo à porta da empresa. “Algo de bom neste maldito dia!”, pensou para si.
Passou a portaria sem responder à interpolação identificativa do porteiro. “Caramba! Passo aqui todos os dias!” – empolgou-se na rogativa do homem.
Subiu pelas escadas, esmaecido e alterado, e entrou no gabinete do diretor em ato contínuo, em perpétua desculpa: “Dr. Filipe, desculpe mas hoje foram só probl…”
À sua frente, a sua mulher, meio despida em cima da secretária, estorcegava por baixo do diretor.
Atrás dele vinha o porteiro…
“Só lhe queria dizer que hoje é domingo!”, deteve-se perante o espectáculo “e que tem as calças todas descosidas atrás!”.
Tema da semana: Problemas, só problemas
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