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Desafio de Escrita

Conto de Natal dos Pássaros

23
Dez19

A imsilva desafiou a comunidade para escrever um conto de natal. Como de costume, nós não batemos bem das asas e dissemos "alinhamos, sim senhora". Vai daí, reunimos as penas e escrevemos - maizómenos - um parágrafo cada um. Este foi o resultado: 

 

Acordou cedo, desperto por um ruído estranho, fruto da sua imaginação de uma noite com poucas horas de sono, certamente. Tentou readormecer, sem sucesso. Que raio, eram 5:30 da madrugada da véspera de Natal, precisava mesmo de dormir se queria estar minimamente desperto para o dia que se avizinhava. Lembrou-se do seu tio, o Patinhas, e de como ao longo dos anos lhes foi incutindo, a ele e aos irmãos, o espírito natalício e a importância da partilha nesta época. Muito lindo quando não se trabalha num centro comercial, com horários rotativos e um ordenado mínimo que faria o saudoso tio chorar notas de 500 euros. O ruído voltou, um pequeno ranger no soalho velho e um remexer de papel. Que maçada! Decidido, Luís, Luísinho para os amigos, levantou-se para verificar, sabendo de antemão que não encontraria nada.

Quando saiu do quarto viu luz na cozinha. Pé ante pé, avançou destemido mas o intensificar do ruído fê-lo temer e pegar no taco de basebol, oportunamente encostado à sapateira. Espreitou da porta e só viu uma série de utensílios desalinhados, farinha por todo o lado e uma colher de pau que, como por magia, mexia freneticamente uma panela. Esfregou os olhos para se habituar à luz e nem queria acreditar no que via: Ratatouille?!

- Sim, sou eu! Vim ver como estavas. Depois de teres zangado com os teus irmãos e de te teres afastado de toda a família, calculei que ias passar o dia de amanhã sozinho e a dormir (estás com ar de sono). Por isso estava aqui a preparar um lanchinho para nós dois. Sei lá, umas filhoses de grão, uns sonhos de abobora, umas estendidas com calda de açúcar. Talvez umas rabanadas e uns coscorões também. Ah e não me posso esquecer da aletria e do arroz doce… não me lembro qual é que gostas mais, por isso faço os dois. Um salame também não ia mal, não senhor. E claro, um bolo-rei. Ou preferes bolo Rainha? Olha, faço também os dois… ah desculpa, ias dizer alguma coisa? É que já sabes, quando começo a falar até me esqueço do tempo.

- Mas tás maluco? Só nós dois, vamos comer isso tudo? - questiona o Luísinho enquanto esfrega os olhos e tenta ajeitar o penacho no alto da cabeça.

- Podemos sempre tentar falar com o resto da tua família, ou com amigos que tenhas… queres telefonar a alguém? Ainda é cedo, mas durante o dia pode ser que consigas arranjar pessoas para virem aqui festejar o Natal contigo.

Luísinho deu por si a pensar na família. Já não falava com eles há algum tempo, desde que todos se tinham chateado com ele. De uma forma realmente absurda, numa das suas habituais partidas que tanto gostava de pregar, mas naquele dia parecia que toda a família tinha perdido a paciência e nunca mais ninguém lhe tinha falado. Ainda por cima foi ao criar um jantar fictício, num restaurante onde só existiam duas mesas e onde ninguém cabia! Desde aí nunca mais soube de ninguém, nem mesmo dos irmãos.

Bem que podia ligar a alguém, já era hora de um nós dar o passo… mas foi nesse momento que a realidade o atacou em forte e percebeu que tinha um rato a esticar massa de filhós na sua cozinha! Arrancou na direcção dele, enfiou-lhe uma marretada com o taco e sentou-se, todo ele a tremer à mesa. A cozinha estava voltada do avesso, mas a ideia de falar com os seus irmãos estava a ganhar dimensão. O rato já se tinha posto a milhas, com um galo para cantar na missa de logo à noite, certamente!

Luísinho aproveitou a embalagem, acabou os sonhos e as filhós, embrulhou umas bolachas de gengibre que estavam no forno (o rato esmerara-se ou teria sido a Benedita que as tinha feito de véspera? Não bebia mais, era certo!) e foi-se vestir para ir até casa do irmão. Havia muito que falar.

Quando lá chegou, Luísinho viu tantos carros estacionados na rua que pensou em desistir. A sua família devia estar toda lá reunida. Enfrentar um é uma coisa, enfrentar todos era uma coisa completamente diferente. Mas tinha tanta comida dava pena estragar. Cheio de coragem tocou à campainha do irmão. Ninguém apareceu. Tentou outra vez. O sobrinho, que ia buscar o carregador do iPad a casa, diz-lhe com maior descontracção que a festa este ano é na casa Zézinho que é no fundo da rua.

Enquanto descia a rua, Luísinho imaginou o reencontro, tantos anos depois. Sentiu o aconchego de um abraço entre os irmãos, o cheiro doce de uma casa apinhada. E os sobrinhos? Será que ainda se lembravam dele? Ou será que o tio Luísinho já só fazia parte das memórias dele e não da pequenada?

A casa estava iluminada e o cheiro a Natal espalhava-se até ao outro lado da rua. Inspirou profundamente, sentindo cada partícula entranhar-se no olfacto. Vislumbrou pelas cortinas as sombras dos pequenos, correndo atrás dos adultos, numa euforia pela noite mais mágica do ano. Dois vultos masculinos distinguiam-se entre a azáfama: Zé e Hugo. O quadro de uma típica família em união, na véspera de Natal. Não faltava absolutamente nada e ninguém parecia sentir a sua falta. Provavelmente, nem se lembrariam dele. Deitou um último olhar à porta, antes de girar sobre os calcanhares e voltar para casa, sozinho.

 

* * * 

Os Pássaros desejam a todos a um Feliz Natal!

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