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Desafio de Escrita

Tema 2 - A Miúda

26
Mai21

Finalmente, a primavera começava a dar os seus primeiros sinais. Os pássaros que tinham partido no final do verão passado já estavam de regresso, as flores começavam a abrir, no ar corria uma leve brisa fresca e o sol ria-se para quem o quisesse ver.

Souberam escolher o dia perfeito para acampar. Ao todo, eram seis. Seis amigos ansiosos por poder voltar ao que mais gostam: à natureza, à liberdade, à tranquilidade. O primeiro acampamento do ano era sempre o mais aguardado. O lugar onde acontecia nunca se alterava. Assim o tinham combinado anos antes. E não era difícil de perceber porquê: de um lado, tinham o rio; do outro, a floresta. Ver o rio, de manhã, ao acordar, era simplesmente magnífico. A água era do mais azul que alguma vez haviam visto, estendia-se até ao horizonte e permitia ver, nas suas profundezas, as rochas que a água foi esculpindo ao longo do tempo. Lá ao longe, na linha do horizonte, viam-se as montanhas. Naquela altura do ano ainda tinham uns resquícios de neve, que se misturavam com o verde que começava a brotar.

Os seis amigos organizavam-se em duas tendas: uma para os rapazes, outra para as raparigas. O Caramelo, o rafeiro que os tinha adotado numa das suas aventuras, era a mascote do grupo e não tinha tenda atribuída uma vez que gostava de visitar as duas.

Naquela primeira manhã em que acordavam ao som das árvores a dançar, o Caramelo tinha escolhido a tenda dos rapazes e ainda dormitava. Lá fora, já alguém se tinha levantado e começava a preparar o pequeno-almoço do grupo. Foi quando deram conta que havia um problema: tinham embalado tudo o que iriam precisar, como de costume, mas parece que desta vez faltava uma coisa – o fogão. Como é que iriam aquecer a água e preparar as refeições sem fogão? Não o podiam ir buscar a casa, o caminho ainda era longo. Também não podiam arranjar lenha para fazerem uma fogueira, uma vez que a madeira ainda estava húmida do inverno. E agora? Cada pessoa tinha uma tarefa, a da Matilde era trazer o fogão. Como é que se esquece uma coisa grande e pesada?

Os que ainda estavam deitados, depressa se levantaram, ao ouvir a discussão. Um, pergunta o que é que se passa; outro, pede que se fale mais baixo que ainda quer dormir mais um pouco; um terceiro, que não está para chatices, vai dar uma volta para esticar as pernas.

O clima estava a aquecer quando o Simão anuncia, na serenidade que lhe era habitual, que se tinha lembrado de colocar um fogão extra na carrinha, por precaução, para o caso de haver alguma emergência. E ainda bem que o fez. Afinal havia outro fogão, a Matilde pôde ficar mais descansada e os amigos perdoaram-lhe a falha. Prepararam o pequeno-almoço e, no final, partiram à aventura pela floresta, à procura das marcas que haviam deixado no ano anterior.

 

A Miúda escreve aqui.

Tema 2 - Miss Lollipop

26
Mai21

Desde tenra idade que Albertina e Alberto eram unha com carne.

Na escola não se largavam por um segundo, fora da escola corriam atrás um do outro por entre campos verdejantes em alegres brincadeiras.

Foram crescendo sempre juntos só tendo olhos um para o outro.

Passou a ser um namoro pegado para se transformar num amor para toda a vida.

Um namoro passado nos bailes daquela aldeia que estava sempre em festa, onde eram os reis da folia.

E era assim que Albertina era feliz. Sempre em festa com o seu Alberto, no meio da folia e do divertimento.

Todas as tentativas de ensinamento que sua mãe lhe tentara transmitir sobre as delícias de cozinhar saíram goradas. Ela não precisava de agarrar um homem pelo estômago pois há muito que agarrara o seu.

E como todos neste planeta também eles foram apanhados pela pandemia que se julgava ser passageira, e obrigados ao confinamento, cada um na sua casa.

Passaram a namorar por videochamadas, o dia inteiro agarrados ao écran, noites inteiras com juras de amor e promessas de uma vida em comum no fim da pandemia.

Mas a pandemia teimava em não passar.

E as videochamadas começaram a ser mais espaçadas passando a ser apenas chamadas de voz pois Albertina ficara de repente sem câmara no seu telefone.

Chamadas essas que, pese embora as tentativas insistentes de Alberto foram rareando cada vez mais da parte de Albertina que deixou mesmo de atender o telefone para desespero de Alberto que lhe enchia a caixa do correio de mensagens.

O pânico começou a tomar conta de Alberto perante o visível desinteresse demonstrado por parte de Albertina.

Tal só podia significar algo que só de pensar sentia a alma a trespassar o seu ser.

Que Albertina se tomara de amores por outro que conheceu durante este afastamento involuntário.

Mas que mais poderia fazer Alberto?

Todas as tentativas humanamente possíveis de contacto e reaproximação saíram frustradas.

Em desespero de causa saiu de casa naquela noite sorrateiramente todo de negro vestido desafiando o recolhimento obrigatório rumo a casa da sua amada pronto a enfrentar a verdade por mais dura que ela fosse.

Quanto mais se aproximava mais evidente era o som de ruídos no seu interior a que se sobrepunha a voz maviosa da sua amada em alegres cantorias evidenciando um estado de alma pleno de felicidade.

Embora a noite estivesse quente, Alberto estava gelado por dentro mas suando por cada poro da sua pele, tremelicando que nem varas verdes.

Trepou silenciosamente o muro e qual lobo furtivo à espera de caçar a sua presa, alcançou a janela mais próxima entreaberta na qual foi possível observar o movimento no interior.

E o seu maior medo confirmou-se.

Afinal havia outro, disso não havia qualquer dúvida.

Um fogão reluzente que fumegava em todo o seu esplendor onde repousavam tachos e panelas repletos de iguarias que Albertina aprendeu a fazer durante o confinamento. "

 

Miss Lollipop escreve aqui.

 

Tema 2 - Sam ao Luar

25
Mai21

— Maria, nem sabes o que me aconteceu hoje no trabalho.

— Então, Manel? Olh'ó fogão.

— Estava eu a chegar ao parque de estacionamento e não é que, àquela hora, já estava cheio! Porra, pensei eu, será que cheguei atrasado? Mas não, estava mesmo cheio!

—  E então?

— Vinha um colega no carro atrás de mim e eu até lhe liguei ali mesmo: “Ó Tozé, isto está cheio.  Aonde vais meter a viatura?”

—  Vou meter ali no parque de cima. Vou já dar aqui a volta, mas'é!

— Eu nem sabia que havia parque de cima!

— Afinal havia outro parque... Fogão.

— Entretanto cheguei à minha secretária e não é que estava lá o telemóvel da empresa! E eu a pensar que andava com ele. Se o chefe me ligasse, estava lixado. E não é que estava no bolso? Então, tinha ligado ao Tozé, não é? Mas estava lá mesmo outro.

— Afinal havia outro telemóvel, qual é o mal? Fogão!

— Olha, apareceu um gajo que eu nunca tinha visto.

— Bom dia, sou o Jorge. Viu o meu telemóvel da empresa? Se me ligam outra vez, estou queimado. Não me lembro onde o pousei, pá!

Pensei eu: “Então e o Miguel, o outro estagiário? Era porreiro!”

— Afinal havia outro estagiário?... Fogão!

 — Havia o Miguel. Era fixola. Mas este Jorge até me ensinou a usar o outro programa para manobrar a maquinaria pesada. Muito mais fácil!

— Ai afinal havia outro programa?... Fogão!

— Acabamos por ir almoçar juntos. Perguntei-lhe se queria ir àquele tradicional da esquina. Aquele, sabes? Que tem o prato do dia. Ele até me indicou outro que é bem mais barato. 

— Afinal havia outro restaurante... Fogão, Manel!

—Olha, até se comeu bem. Se calhar vou começar a lá ir. E nem sabes, não é que a estrada nova está outra vez em obras? Tive de dar a volta... Por isso é que cheguei a esta hora. Tive de meter a morada no GPS. Encontrei outro caminho, não sou bom nisto?

— Já sabia que havia outro caminho... FOGÃO!

— Possa mulher, estás a enervar-me, caraças. O que tem o fogão?

— Olha, tem o jantar que acabaste de queimar, seu parolo! Que tal ires buscar outro?

 

Sam ao Luar escreve aqui.

Tema 2 - imsilva

25
Mai21

Lola


Há vidas fecundadas em dias de maus espíritos, como a de Lola.
Ninguém sabia o verdadeiro nome, ficou Lola porque em tempos teria andado por terras de Espanha, e quando voltou, foi assim que lhe passaram a chamar.
Desde a violência a que assistiu em casa dos pais, ao trabalho que teve durante 4 anos e que depois de uma falência a deixou desempregada e grávida de um colega que se pôs a milhas, Lola nunca teve um bom espírito que a acompanhasse.
O pai quando soube da gravidez, expulsou-a de casa. Sem outra família a quem recorrer, sem amizades que a pudessem acudir, Lola esteve num abrigo para futuras mães em dificuldades, onde por norma entregavam os filhos para adopção. Lola não foi excepção. Algo que recordaria para sempre com dor.
A vida nunca lhe tinha dado as melhores companhias, ela também nunca as tinha sabido escolher, e assim acabou por viver com uns e com outros, nenhum deles tendo sido alguém que lhe desse algo positivo.
Quando ouviu falar de um trabalho em Espanha, arranjou coragem e foi. Esteve lá 2 anos e já foi demasiado. Foi explorada, mal tratada e assim que conseguiu, voltou para Portugal com menos amor próprio do que nunca.
Lola era uma mulher frágil, nunca alguém lhe tinha dado valor algum.
Ao fim de muitos anos, lola vivia numa barraca de um bairro de barracas, que a Segurança Social visitava de vez em quando. Ao verem o estado mental em que ela se encontrava, e não conseguindo convencê-la a ir para uma instituição, decidiram tirar-lhe do seu espaço as coisas que consideraram perigosas, como por exemplo, o fogão. Pediram apoio às instituições devidas e forneciam-lhe 2 refeições por dia, entregues à porta.
Até aquele dia...
As pessoas que viviam naquele bairro, acordaram com o cheiro intenso a fumo que entrava por todas as frinchas das janelas e portas, e viram o clarão alaranjado lá fora. A barraca de Lola estava em chamas, e lá dentro aquela pessoa que nunca na vida tinha tido amor ou algo que se parecesse com uma vida digna.
P.S. A peritagem concluiu que o incêndio tinha sido causado por um pequeno fogão de campismo. 

I'm Silva escreve aqui. 

Tema 2 - Cristina

24
Mai21

A menina de sua mãe

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            Foto: Artur Pastor (?)

Na pequena casa térrea com chão de sobrado de madeira de pinho, pequenas janelas e grossas paredes caiadas, a cozinha e a lareira eram o coração da casa. A cozinha era tudo o que havia na casa para além dos dois exíguos quartos de dormir onde mal cabiam os leitos estreitos de ferro. As camas eram limpas e confortáveis com os seus colchões de camisas de milho secas, os velhos lençóis estreitos de algodão e as mantas grossas de trapo.

Viviam do que a terra dava graças ao trabalho de todos no amanho de umas quantas leiras onde cultivavam as hortas, o milho para a broa, algumas árvores de fruto, a vinha e a azeitona. Tinham uma capoeira de galinhas, meia dúzia de ovelhas e outras tantas cabras, engordavam dois bácaros por ano para terem alguma carne na salgadeira e assim iam governando a vida para que não faltasse a comida na mesa.

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Foto: Artur Pastor

Fosse Inverno ou Verão o lume estava sempre aceso e havia que não o deixar apagar porque os fósforos eram caros, 3 tostões a caixa e nem sempre havia. Quando o lume se apagava em casa ia-se a casa de uma vizinha pedir umas brasas ou um tição aceso para atear de novo.

O fogão da casa era a lareira com as panelas de ferro de três pés, os tachos e a sertã pousados nas trempes. As tenazes (tanazes como lhes chamavam) e o abanador estavam sempre por ali.

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Havia também a cafeteira de barro onde se fazia o “café” de cevada torrada e moída que ficava aconchegado ao lado dos troncos a arder. Chamavam-lhe “chicolateira” e era estimada com cuidado para não se quebrar. De manhã cedo depois do mata-bicho ficava ao lume a panela de três pernas com os feijões a cozer, aquecida por umas quantas cavacas durante horas. Mais perto da hora de comer juntariam as couves, os nabos, ou o que houvesse na horta com mais um naco de carne da salgadeira e estava “o comer” feito. Num dia mais especial lá ia um tacho para a trempe para guisar um frango, ou ia a sertã para a trempe para fritar um ovo ou umas rodelas de batatas em azeite. No Natal, o tacho também brilhava com as filhoses a fritar e um cheiro a comida mimosa que só por si já enchia a alma. Nesses dias felizes a mãe até lhes perguntava se queriam que fizesse um "galito" com a massa da filhós, e eles deliravam quando ficavam algo parecidas.

A vida da família ia correndo plena de trabalho e canseiras, mas com o suficiente para todos. Iam nascendo os filhos a cada dois anos e já eram cinco quando a tragédia levou o pai e ficou a viúva com o seu ranchinho para criar e as terras para amanhar e de lá tirar o sustento.

Da vila vinham casais com bebés pequenos procurar mocinhas na aldeia para ajudar na lida da casa e tomar conta dos filhos. A mãe lá ia recusando as ofertas destes trabalhos para a sua menina mais velha, queria-a junto de si e dos irmãos, na segurança da sua casa. As dificuldades foram ficando maiores e a mãe deixou-se convencer por um casal que lhe pareceu bondoso. Eram gente de posses, um médico e a sua esposa e queriam uma menina para ajudar na cozinha e a cuidar dos filhos. A mãe sabia o quanto a sua menina gostava de aprender a cozinhar, sabia que era essa a sua paixão, mas receava ainda assim.

Como a vila era próxima e os senhores tinham prometido que traziam a menina aos sábados e a levavam de novo aos domingos, a mãe deixou a sua menina ir como criada de servir para o palacete do casal. O que lhe custou, as lágrimas que chorou, mas tinha esperança de que a sua menina fosse estimada e a tratassem bem. Ia ser menos uma boca para sustentar e ainda lhe davam um pequeno salário pelo trabalho da filha. Pareciam ser pessoas justas pois não iam descontar os tecidos e custos de vestuário da menina ao salário.

E chegou o dia de domingo, e a menina partiu para a casa da vila. A pequena do alto dos seus 10 anos, de corpo muito franzino ia com a sua muda de roupa numa trouxa feita de pano rumo a uma nova vida. Os olhos brilhavam e deixavam cair lágrimas abundantes à medida que a sua casinha branca se deixava de avistar.

E foi uma revolução na sua vida, foi um nunca mais acabar de banho e lavagem com uma enorme quantidade de água aquecida e sabão com cheiro, cortar unhas, ajeitar cabelos, aprender a usar roupas que nunca tinha visto e andar sempre de sapatos. Na casa usava sempre a mesma roupa que as outras criadas e tinha de estar sempre mais reluzente do que a roupa de ir à missa aos domingos. Depois foram os modos de falar e de calar, de andar, de cuidar das coisas da casa, tudo foi mudado e posto ao modo do viver dos senhores do palacete. Nunca faltava a comida, mas a menina estranhava os sabores e custava-lhe muitas vezes comer do que havia. Sentia saudades da sopa da panela do lume apesar de nem gostar muito dela, mas estava mais habituada ao sabor.

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A cozinha do palacete não era o coração da casa, mas era o lugar favorito da menina. As paredes tinham azulejos brancos até ao teto, havia tachos, panelas, cafeteiras, formas de bolos, e todo o tipo de objetos que nunca tinha visto antes. Nas paredes havia louças coloridas penduradas em forma de folhas de couve, tomates, nabos, peixes tudo era colorido, limpo e cheio de luz. Havia armários cheios de louça fina para servir, bandejas, jarros de vidro para a água, xicaras delicadas como nunca tinha visto. Mas nada se comparava ao enorme, imponente e incrível fogão a lenha onde tudo era cozinhado. Não faziam o lume no chão nem usavam trempes ou panelas de três pernas! Até a lenha para o fogão era mimosa. Usavam lenha cortada em pedaços feitos ao tamanho da fornalha e vinham entregar também lenha miúda e pinhas para acender os troncos grossos. Não usavam feixes de vides, nem caruma, tudo era muito limpo e até a cinza era mais branquinha do que a que tiravam do borralho lá de casa.

À noite, na sua cama chorava, chorava muito baixinho, sentia a falta da mãe, dos irmãos e do seu viver simples e mais livre. A menina sabia que tinha de ser, que assim estava a ajudar a mãe e os irmãos e talvez com o tempo se acostumasse. Naquela primeira semana não aprendera nada sobre como cozinhavam, apenas se estava a habituar a todos aqueles novos preceitos de fazer as coisas. Queria que dissessem bem dela quando a levassem até à sua mãe.

Quando o sábado chegou e a levaram de volta a casa, a menina não conseguia parar de chorar de alegria, e a mãe e os irmãos não paravam de olhar para ela. Estava diferente no cabelo, nas mãos e nos pés, cheirava a sabão perfumado. Via-se que tinham cuidado bem dela, mas tinha os olhos tristes.

Ao borralho naquela noite foi um nunca mais acabar de contar como se tinha passado aquela semana, como era a vida no palacete, os objetos, a comida, as roupas, … Quando a menina começou a falar da cozinha e disse que afinal havia outro fogão, ficaram todos espantados. A menina contou que naquele fogão o lume ficava fechado numa fornalha e nem se via, as panelas punham-se em cima do fogão e aqueciam, tinha um depósito de lado com torneira por onde tiravam a água quente, até tinha um forno sem lume. A menina estava maravilhada com aquele fogão e aquela cozinha.

Passou o domingo e à tardinha a mãe perguntou-lhe se queria voltar para a vila, disse-lhe que sentiam muito a falta dela em casa e que se ela não quisesse ir, não ia. Tudo se havia de arranjar na mesma.

A menina ficou calada a pensar e disse à mãe para ela decidir.

 

Cristina escreve aqui.

Tema 2 - Biiyue

24
Mai21

Mudanças de casa são um excitante pesadelo! Empacotar e depois desempacotar. Limpar os espaços. Mentalmente visualizar como será a distribuição de mobília e decoração. Vai-se a ver e já existe tanto para voltar a ser reutilizado, mas também é preciso mobília nova. 

Começam às idas às lojas, o coração fica dividido, as decisões são tomadas e no final o dinheiro só voa da conta bancária. Chega a altura de ver a casa vazia atolada de caixas de mudanças.

Existe excitação até começar a ser cansativo. É necessário montar a mobília, voltar a limpar, colocar num sítio mas depois recolocar noutro que parece melhor. Ao final de horas e horas, que se tornou em dias exaustivos, a casa começa a parecer como uma casa. 

Hora de começar a dar as mudanças por terminadas. Mas no meio de tanta confusão de dar os últimos retoques o gato desapareceu! A casa é revirada vezes sem conta, até que se houve um miar e coloca-se a posição de detetive. O som vem detrás de uma parede, que é oca e com um olhar atento encontra-se uma saliência.

Uma porta abre-se e descobre-se um compartimento, uma mini casa dentro de uma casa. Afinal havia outro... Fogão, frigorífico, lavatório, sanita, cama, estantes, mesa, cadeiras...

 

Biiyue escreve aqui.

Tema 2 - Mariana

23
Mai21

O avô Francisco é casmurro. Sempre foi, mas a idade só o deixou pior. Adora reclamar sobre tudo, mas o seu tema favorito é a juventude. Segundo ele nós não fazemos nada pela vida e passamos o tempo todo atrás dos ecrãs - uns mimadinhos.

Ontem estive com ele e contei-lhe a novidade: comprei casa. Depois de meses a limpar a merda dos outros, consegui juntar dinheiro suficiente para comprar a minha própria goma. Ele ficou eufórico, nem quis acreditar. Eu também só acreditei quando estava a escolher o tipo de piso que queria para a minha cozinha amarela.

Expliquei ao avô Francisco que os antigos donos da casa eram uns porcos e que fui eu sozinha a resolver tudo na casa, desde a substituição das tomadas à pintura das paredes e, claro, passando pela decoração. O velho ficou chocado. Contei-lhe também que gastei uma boa quantia num fogão xpto, mas que, afinal, já havia um. Os antigos donos deixaram-me um fogão ainda melhor do que aquele que eu tinha comprado, provavelmente como um pedido de desculpa pelos sacos com lixo que deixaram espalhados.

Nos olhos do avô Francisco vi algo que nunca tinha visto: orgulho. No entanto, esse orgulho foi substituído por desconfiança quando afirmei que ia ficar com os dois fogões. "Mas para que queres dois? E aliás, desde quando é que tu cozinhas?", perguntou, já de braços cruzados e uma sobrancelha levantada. Eu, como boa jovem que sou, vivo de Uber Eats, logicamente. Mas não posso querer dois fogões em casa para umas fotos fixes no instagram?

Lá me pediu para ver a casa, por isso abri o House Flipper e mostrei-lhe. Apanhei.

 

Mariana escreve aqui. 

 

Tema 2 - José da Xã

23
Mai21

Atravessou a rua pejada de viaturas da polícia e outras descaracterizadas que cortavam totalmente o trânsito da rua, serpenteando por entre elas até chegar ao passeio contrário onde surgiu um corpo já tapado com um pano branco. A seu lado reconheceu um velho inspector, mas de outra brigada. Assaz gordo Arcílio tinha quase todos os vícios: fumador, jogador, preguiçoso e lambão.

- Bom dia Arcílio, que fazes aqui? – e estendeu-lhe o punho para um cumprimento.

- Olha o Val… Acordaste cedo hoje! – e deu uma risada.

- Pois acordei… Ou melhor acordaram-me… Já te perguntei o que fazes aqui. Isto é um homicídio não uma rusga.

O outro saca de um cigarro, acende-o com o isqueiro voltando as costas contra o vento e tapando com a mão. Depois devolve:

- Isso pensas tu… Já viste a vítima?

- Ainda não… Deixa-me espreitar…

Levantou o lençol, olhou demoradamente e depois anunciou:

- Uma jovem entre 30 a 35 anos, conhecia quem a matou e quem o fez era canhoto.

- O problema reside aí…

- Onde?

- No sexo…

Valdemar não entendeu:

- Agora não percebi…

- Há três anos essa Arcizete que está aí morta chamava-se Octávio…

- Ok. Isso quer dizer o quê? Alguém a matou…

- Pois… 

Valdemar percebeu, mas não deu seguimento à conversa. Perguntou:

- Sabes onde morava a vítima?

- No terceiro andar desse prédio aí – e apontou com o queixo.

- Vamos lá?

- Nem penses… Nunca mais chegaria lá acima!

O jovem inspector riu e dirigiu-se ao velho e degradado edifício. Assim que entrou subiu ao nariz um cheiro a bafio. A cada degrau que pisava este rangia sob o seu peso. Valdemar temia que o passo seguinte fosse desfazer a velha e carunchosa escada de madeira. No cimo do prédio o patamar era mal iluminado por uma pequena janela redonda que havia muito tempo que não via limpeza. À esquerda encontrou a porta aberta de um apartamento e um polícia do lado de dentro a guardar. Identificou-se e penetrou num local ínfimo onde reinava a confusão. Parecia que alguém havia entrado ali em busca de qualquer coisa. Tentando não tocar em nada Valdemar foi escolhendo os sítios para colocar os pés com todo o cuidado. Andou pela sala, entrou numa divisão onde mal cabia a cama, seguiu-se a casa de banho também ela demasiado acolhedora, para terminar na cozinha.

Abriu armários, vasculhou alguns e quando deu por terminada a pesquisa regressou ao patamar para voltar à rua. Nesse mesmo instante Arcílio acabava de chegar ao piso tentando respirar. Valdemar aguardou que o colega recuperasse o fôlego para começar a descer.

- Já vais?

- Já!

- Alguma novidade?

- Humm, nada de interessante.

- Vou só dar uma espreitadela.

- Ok, vou indo!

Ainda antes de começar a descida Valdemar declarou:

- Olha Arcílio afinal havia outro… fogão! – e principiou a descer as escadas.

O obeso inspector coçou a cabeça e sem entender patavina encolheu os ombros e penetrou no apartamento.

 

José da Xã escreve aqui.

Tema 2 - Ana de Deus

22
Mai21

o vestido de Francisca, quando entrou de braço dado com o pai, no caminho de pétalas que a levava até David, deu origem ao tititi que tirava as avós do sério. cada uma na sua ala, do noivo e da noiva, viraram-se para trás e tossiram um: caaaladaaass! passou a só se ouvir a marcha nupcial e os passarinhos.

os noivos estavam felizes e muito bem-dispostos. tinham convencido os pais e os avós todos a aprender a dançar o tango. a química entre os jovens tinha deixado as avós orgulhosas. ensaiaram em família durante a última semana antes da boda. Francisca e David tinham os corpos perfeitos de bailarinos profissionais.

sabendo o porquê da racha do vestido as avós sentiam-se vaidosas por terem sido incluídas no segredo e por se sentirem capazes de também fazer boa figura. o baile acabou por ser um sucesso. o casamento foi recordado durante muito tempo, e serviu de referência para os que lhe seguiram.

de volta à cidade os recém-casados revelaram que estavam a comprar uma casa há alguns meses, apesar de terem continuado a viver com os pais. eram um primor de filhos, diziam as avós. combinaram encontrar-se à saída do metro da Alameda, as obras de remodelação da casa tinham acabado, precisava de ser limpa e, finalmente, mobilada.

os avós tinham vindo de taxi, que já não tinham idade para descer e subir tanta escadaria. Francisca deu indicação ao motorista para os deixar na esplanada da gelataria na Guerra Junqueiro. os pais não queriam crer, desde criança que a filha dizia que um dia teria dinheiro para viver naquela rua que tanto a encantava.

David só queria viver com ela, era-lhe indiferente onde, mas não resistiu ao entusiasmo da sua amada. estavam ambos felizes com a escolha e o resultado. os avós tinham se sentado na esplanada a saborear um gelado. vêem! exclamou a jovem, mesmo quem não nos encontrar em casa pode deliciar-se nesta esplanada.

tinham comprado a penthouse num prédio com três andares, sem elevador. os avós suspiraram para ganhar alento. quando finalmente entraram na casa dos netos, já eles tinham ido buscar cadeiras ao terraço. os homens da família disponibilizaram-se para carregar o que fosse necessário.

os pombinhos tiraram duas semanas de férias para tornar a casa habitável e optaram por adiar a lua-de-mel para o Inverno. queriam neve. as mães riram: quase todos querem praias paradisíacas e vocês querem frio. por falar em carregar coisas, disse o filho, preciso de ajuda para trazer um fogão ofertado à última da hora.

Francisca ficaria em casa para receber as entregas e David ia com o pai e o sogro buscar o que estava fora da remessa. no dia seguinte, a recém-casada ligou aflita: amor! afinal havia outro (cabra, murmurou o sogro).. fogão! o filho e o compadre fulminaram-no com o olhar. encolheu-se todo e corou até às orelhas.

 

Ana de Deus escreve aqui.

Tema 2 - FatiaMor

22
Mai21

Assim que colocou a chave à porta sentiu um arrepio pela espinha. O seu sexto-sentido sempre fora apurado e raramente o deixava ficar mal. Ainda hesitou e pensou em recuar. Mas outros valores se levantavam e, a contragosto, arrepiado e a benzer-se, rodou a chave da forma mais silenciosa que conseguiu. A porta rangeu ligeiramente, deixando entrever a luz que brotava do lado de dentro. O corredor estava todo iluminado e havia roupa espalhada por todos os cantos, sem cerimónia ou pudor. Quem a envergasse antes, estava agora seguramente nu e sem qualquer hipótese de fugir à vergonha. Empurrou a porta com cuidado e transpôs a ombreira, sempre a olhar por cima do seu ombro, imaginando os ombros nus ao ver um soutien e camisolas mesmo aos seus pés. Um gato surgiu vindo da sala à direita e olhou-o, penetrante. Poderia ser um cão e não teria o mesmo impacto. Um gato preto, retinto, como aquele, era mau augúrio e noutros tempos serviria de desculpa para rodar nos calcanhares e retornar, por onde havia vindo. Um miado arrancou-o à crença supersticiosa. Pior seria que agora o ouvissem. Não só confirmava a sua crença, de que os gatos eram realmente fontes de azar, como teria que resolver outro problema, da pior maneira possível. 

Um pequeno grito abafado ouviu-se pela casa. O ato estava consumado, ao menos, unilateralmente. Pela sua experiência, restava-lhe agora pouco tempo. Deu dois passos na direção do gato, que já estava em andamento, pressentindo que em breve haveria mais companhia. Não tardaria até que os respetivos donos de todas aquelas inertes peças de roupa estivessem de volta para as resgatar. Virou à esquerda, para a divisão mais escura, na esperança de não ser notado.

O gato resolveu enrolar-se nas pernas e miar com mais intensidade. Tentou enxotá-lo, fazendo um "shhh" baixinho, enquanto o empurrava. O gato tentava, com vigor, fazer oitos entre as suas pernas, ao ponto de o desequilibrar.

A verdade é que se, agora, tentasse recordar-se do que aconteceu, não seria fácil dar sentido à sequência de eventos. Os passos no corredor alertaram-no. Ou talvez tenha sido o miado agudo do gato, quando lhe pisou a pata, na tentativa vã do afastar, que criou a loucura imensa em que se viu enfiado. Facto foi, que ao pisar o gato este miou, espetou a garras, alguém gritou - ou terá sido ele? - passos ouviram-se no corredor, a precipitarem-se para a roupa - ou na sua direção? - até que se desequilibrou, acertou no interruptor, acendeu uma luz perfulgente e ali estavam todos: ele e ela nus, um gato a lamber a pata e ele, agarrado aos bicos de um fogão.

- Só queria dizer-lhes... - disse-lhes, enquanto tentava disfarçar a sua falta de jeito - que afinal havia outro.... - hesitou, olhou em todas as direções e disparou, - fogão!

Os corpos inertes caíram no chão, ao som de duas balas fulminantes e ele continuou, com o seu impulso obsessivo de quem não pode deixar uma ideia a meio: - Havia outro fogão, e eu gostaria muito que o vissem!