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Desafio de Escrita

Tema #16 Osapo

08
Jan20

Só estou bem aonde não estou …


O meu tio Jacinto reformou-se o ano passado.

A vida não foi lhe simpática. A escola correu por entre as horas vagas do campo. Primeiro o gado, as sementeiras e as colheitas, a feira semanal e tudo aquilo que quem fez do campo lar conhece. Só depois as letras e os números.

Os primeiros traumas chegaram com a guerra. Com 19 anos, Salazar acampado no poder, saiu da metrópole para viver a brutalidade da guerra nos solos e na humidade da Guiné. Deixou os pais em sobressalto e a namorada a rezar pelas noites dentro. Viu colegas a morrerem ao lado e acompanhou estropiados até ao barco que os trouxe de volta com o destino amarfalhado em nome da pátria, atraiçoados por algo que não sabiam bem o que era ou o que representava.

O regresso foi cruel. Vinha diferente, demasiado desconhecido. Até para ele. Ainda assim, a Rosa, muito receosa, não se escondeu e convenceu-o a construírem uma vida conjunta. Embora, por muitas vezes, se sentisse sozinha a lutar por sonhos que, nem sempre, eram de ambos.

A primeira filha, a Conceição, assistiu ao casamento alojada no ventre. Os outros apareceram com os invernos. Todos companheiros na travessia do tempo.

Empregou-se no comércio. As vidas dos clientes atenuavam-lhe os sonhos nas noites de pavor. Começou a esquecer-se. Apenas a rasgos recordava sons e cheiros e os sabores das africanas que muitos pensamentos e tremores lhe aliviaram pelas selvas distantes de Bissau.

Enquanto isso a Rosa suava numa fábrica têxtil, onde tecia panos em teares gastos. Os filhos secavam-lhe as dores enquanto atava os fios que se rompiam pela ação da lançadeira, ainda de madeira.

A sorte surgiu quando o Gervásio o desafiou a caminharem serras fora. Aprendeu uma língua diferente, numa profissão em que memorizou os gestos, afundado num buraco que não se distinguia do estábulo dos animais dos tempos de escola.

No verão seguinte fazia-se acompanhar pela Rosa e os filhos quando cruzou Vilar Formoso e olhou para trás.

Empenharam couro e suor, enquanto sonhavam numa barraca, mais uma num bidonville triste, algures nos arredores de Paris. Muitas noites deitaram-se com um caldo quente, depois de cozinharem para os filhos que os preocupavam pelos amigos a que se juntavam.

Aos poucos os suores retornaram silenciosamente pelo escuro. E, sem surpresas, soube que tinha que abalar.

O Inocêncio, num julho onde o fogo não deu descanso, trespassou-lhe o espaço. (1)

Foi o justificar do retorno ao ventre da mãe terra.

O percurso de operário da Peugeot a taberneiro foi célere, mas não foi fácil. Ainda assim, esforçou-se. Dedicou-se, envolveram-se todos, para que o arrependimento não se intrometesse nos seus silêncios. Por vezes apaziguadores. Muitas vezes não.

Com o negócio a correr melhor, a dar para mais do que a sopa, conseguiu fazer a vida um pouco mais meiga para os filhos. Mesmo que meiguice não tenha abundado pela sua pele e alma. Exceto quando as mulheres africanas, que frequentemente ainda lhe toldavam a imaginação, o faziam sonhar com as noites distantes mas sufocantes.

Nunca foi religioso até porque, tal como a pátria, não sabe bem o que isso representa. Deus, talvez demasiado ocupado, não se cruzou com ele. Ele, demasiado cansado, não se esforçou para o encontrar. Mas tirava um dia por ano para uma incursão a Fátima, onde incluía um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, uma doação nas esmolas e uma vela a queimar no velário que, por vezes, se assemelhava a um dragão a expelir fogo. Mais fumo que fogo, mas pronto. Não tinha a certeza se seria do leitão e do espumante tinto da Bairrada, mas o regresso era sempre melhor.

Mas, como tudo, cansou-se das semanas de 365 dias. Das longas noites que teimavam em repetir-se. Das refeições interrompidas e das sestas onde não se envolveu. Das festas que não comemorou. Das férias que reviu nas fotos dos outros. Dos anos que não sentiu o virar do calendário, dos escuteiros da freguesia, pendurado atrás do balcão de inox.

E também se fartou das malditas ambições que, com vontade própria, esticavam sempre que as alcançavam. Mesmo que a vida, ressentindo-se, não o sentisse ...

E, foi assim, que o meu tio Jacinto resolveu poisar a vida e as ambições em descanso. E aguardar (em pânico como se confessa nos seus silêncios cada vez mais frequentes) por algo ou alguém que o irá conduzir para onde o quiserem. De preferência sem dor. Ou pelo menos enquanto sonha com a macieza da pele quente de uma negra na sua, fria e excessivamente áspera.

Atenua o medo navegando, pela internet, a mais recente descoberta, pelo café, que já foi dele, ou pelas ruas empedradas, da vida que passam em sprint. Esquece os sonhos que não teve, arrastando os pés por caminhos que parecem não ter sentido ou direção, embaralhando as cartas com as mãos gastas à procura do ás de trunfo, saltitando entre imagens que não reconhece, umas e outras sempre com o olhar distante e perdido. Muitas vezes vazio.

Porque a vida não foi lhe simpática. A ele e a muitos outros.

Por causa de um desafio dos pássaros, que parece desesperadamente interminável, fi-lo refletir sobre o seu tempo e o seu espaço. Um silêncio depois disse-me com a voz subtilmente arrastada:

Sou mais velho que o tempo e estendo-me para além do espaço que imaginamos!”.

E suspirando concluiu:

Mas sei que só estou bem aonde não estou e só quero ir aonde não vou”.

E veio-me à memória o António que mora em cada um de nós ... (2)

 

 

Notas do sapo:
(1) Atingiram-se aqui as 400 palavras. A responsabilidade de continuar a ler este texto a partir daqui é exclusivamente sua. A gerência do espaço não se responsabiliza pelos danos que essa leitura adicional lhe possam causar, hoje ou no futuro

(2) https://www.youtube.com/watch?v=B_Ij425SMcA

 

Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer

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Tema #16 3ª Face

08
Jan20

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E aqui estou na consulta de avaliação final com o psiquiatra.

Acham que já reúno condições para a alta hospitalar.

(Eu não quero! Aqui sinto-me protegida. Convivo melhor com a loucura dos outros do que com a minha, lá fora.)

 

O Dr. Sousa pergunta-me como me vejo.

(Eu sinto-me um pássaro dentro de uma gaiola de porta aberta e que se recusa a enfrentar a liberdade.)

Mas respondo-lhe que me revejo novamente na alma de uma jovem adulta.

 

- E para onde vais, quando saíres daqui?

(Ao Alentejo não regressarei. É demasiada vergonha para mim e para os meus padrinhos, depois do que lá fiz. Apesar de ser aquele o pedaço de terra que me torna feliz.)

- Vou para casa dos avós, aqui em Lisboa.

 

- E o que queres fazer nesta vida adulta?

(A minha avó contava-me que, em criança, a mãe a obrigava a trabalhar continuamente, para que aprendesse a ser uma adulta responsável.

Não tinha ordem de brincar nem de descansar.

No pino do Verão, com a calmaria abrasadora que a telha vã não tapava, a minha avó dormia a sesta debaixo da cama, escondida, para que a mãe não desconfiasse que estava a descansar e julgasse que andava no monte a guardar os perus.)

- Vou voltar a estudar e arranjar um emprego para pagar os estudos. Talvez num supermercado, pois tenho experiência da loja dos meus padrinhos. Não quero dar mais esse peso aos meus avós.

Mas sei que tenho o processo em tribunal, por causa da agressão. O advogado diz-me que o mais provável é passar uns meses a fazer trabalho comunitário. E irei cumprir o acompanhamento médico, aqui na psiquiatria, para não voltar aos surtos psicóticos.

 

- Sabes, minha pequena, acho que está na hora de voltares à tua vida. Amanhã já terás o papel da alta. Avisa os avós para te virem buscar, que ainda quero falar com eles.

 

E agora?

O discurso assertivo não condiz com o que sinto cá dentro.

Ainda não percebi o que é isto de ser adulto.

Amanhã começo a procurar uma cama alta, onde me possa esconder, como a minha avó fazia quando dormia a sesta…

Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer

3ª Face escreve aqui

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Tema #16 Alexandra

08
Jan20

Eu ainda não entendi o que é para escrever neste tema, como esperam que perceba o que é ser adulto?

Em criança, olhava um tanto deslumbrada para os adultos. Nunca tive pressa de o ser, mas achava que aquelas vidas eram mais interessantes do que a minha e tentava imita-los nas longas tardes em que fazia as Barbies exasperarem-se com o trabalho, os filhos nas escolas e as casas para arrumar.

Padeceram um cadinho as senhoras Mattel. 

Os adultos têm que trabalhar, pagar impostos, aturar pessoas chatas... e eu não tenho paciência para nada disso. 

Às vezes sinto que estou velha, mas adulta nunca me senti e nem sei se quero. 
 
Os meus olhos continuam a brilhar quando vejo bolinhas de sabão, continuo a gritar quando vejo uma aranha, acredito no Pai Natal...

A única coisa boa de ser adulto é que se pode beber como gente grande.

Os adultos normais, eu não, que sou fraquinha.

Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer

Alexandra escreve aqui

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reflexão - Inês Pereira

08
Jan20

Os pássaros são mesmo fofinhos e deram umas férias ao pessoal durante as festas, não sem deixar ainda uma proposta para reflectirmos sobre este desafio e sobre os temas propostos. Fez-me lembrar aqueles professores que começavam por dizer que não iriam passar trabalhos de casa e, no fim das contas, arranjam sempre qualquer coisa para a malta fazer antes da aula terminar.

As minhas festas foram muito agitadas e implicaram uma nova viagem o que dificultou e atrasou a publicação, tanto do tema 16 como da própria reflexão. No entanto, não sou mulher de desistir e portanto aqui estou para cumprir e reflectir contigo sobre este desafio incrível que em boa hora descobri.

Vamos começar com o elefante na sala, que é como quem diz, os temas. Sim, existiram uns quantos que me desconcertaram e me fizeram duvidar da sanidade mental destes pássaros, outros que me apanharam na curva de tão inusitados e outros que simplesmente me encontraram numa fase de pouca inspiração. Ainda assim, tentei sempre fazer o melhor, por vezes consciente de que esse «melhor» poderia ser pequeno.

Sobretudo, porque, graças a este desafio, fiquei a conhecer gente muito talentosa, cuja escrita me deliciou e me fez ter consciência das minhas limitações e imperfeições. Foi fascinante ler os vários pontos de vista dos participantes e ficar a conhecer os seus próprios blogs. Em suma, foi uma viagem espectacular e altamente enriquecedora.

Tanto assim, que dei por mim a inscrever-me para o próximo desafio de escrita dos pássaros! Portanto, apesar do último tema ir para o ar nesta Sexta-feira, podes contar que em breve voltaremos para voar com a passarada e colorir os teus dias.

 

Inês Pereira escreve aqui

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Tema #16 Inês Pereira

08
Jan20

A sério que vamos começar o ano a falar sobre a vida adulta? Bem, pensando melhor, até que faz sentido numa época em que todos fazemos balanços e estabelecemos novos objectivos e desejos para o ano que agora começa. Existirá coisa mais adulta do que este hábito que, regra geral, acaba em frustração e desilusão? 

Não me recordo de, quando criança, ter pensado no que desejava para o ano novo. Certamente, pensava na lista de presentes que gostaria de receber no Natal, mas nunca me ocorreria que a mudança de ano significava alguma coisa na roda dos acontecimentos da minha vida. Assim sendo, este deverá ser o primeiro sintoma de que, no fim das contas, já sou uma pessoa adulta.

Mas existe uma enorme diferença entre ser adulta e entender o que é suposto se fazer nesta fase das nossas vidas. Curiosamente, fui uma criança feliz mas com uma vontade enorme de crescer depressa, na ânsia de ser dona do meu nariz. Quanta inocência... Quem nos contou que os adultos são livres e que podem fazer tudo o que lhes aprouver? 

As prisões só se alteram e tornam-se mais subtis, pois não nos chegam através da voz do pai e da mãe. Em vez disso, passamos a ser prisioneiros do patrão, dos amores, do dinheiro, do status social, só para dar alguns exemplos. Até as responsabilidades são capazes de nos colocar grilhões nos pés e nas mãos. Isto sem contar com a moral ou até com a opinião dos outros. 

De facto, não acredito que seja possível passear pela vida adulta sem nos agarrarmos a estas âncoras, que nos colocam com a falsa ideia de que estamos em terra firme, com raízes fortes e estáveis. Uma ilusão com um preço demasiado elevado, na minha opinião, sobretudo porque sou apaixonada pela ideia da liberdade, esse conceito maravilhoso e tão utópico.

Os carcereiros da minha prisão na vida adulta são as responsabilidades e o vil dinheiro. Não consigo fugir deles, mesmo quando recuso a todos os outros. Claramente, ainda não percebi muito bem o que é suposto se fazer, mas continuo a procurar as respostas e as perguntas para que este seja um caminho de felicidade de dentro para fora.

 

 

Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer

Inês Pereira escreve aqui

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Tema #16 Insensato

08
Jan20

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Vida adulta: uma Vaca em Chamas

Certo dia, todos almejamos a fase adulta.

Naqueles tempos, pelos corredores da faculdade, esta estava associada ao casamento e a um conto de fadas trivial. Isto, para alguns, já que outros pretendiam a dependência económica dos seus progenitores e a concretização de sonhos, alguns dos quais bizarros, para aquele tempo. Os sapos surgiram, um dos sapatos não se perdeu no baile de finalistas, o amor deu lugar ao devaneio e o ser perfeito revelou outra face. Nem todas as conquistas foram fáceis ou alcançadas. Os honorários desmoronaram-se, alguns amores tornaram-se impossíveis ou incompatíveis com casamentos previamente traçados por alguém. O Rui não viveu uma história de amor com o João. Ainda hoje há quem diga que estão impedidos de tal e condenados ao Inferno. O Pedro, tão cedo, disse-nos adeus, com o corpo em chamas, face ao tratamento de uma doença que julgávamos associada a maus-hábitos.

Com o decorrer do tempo, compreendi que a justiça é utópica, mas o mais difícil foi constatar que a vida não é justa.

De e para causas, um mar revolto manifestou-se. A esperança e a crença de um mundo melhor, para todos, começou a esvair-se em sangue coagulado. Lágrimas de sedimentos, puras ou não, de acordo com as memórias. Faculdades perdidas, derrotas e quantos erros. A fase adulta chegou e eu, aqui, procuro associar variáveis, resolver sistemas de equações, encontrar uma fórmula mágica para o sentido da vida. A única certeza, a morte.

Enquanto isso, tenho uma mão repleta de pequenos nadas, mas que mesmo assim procuro dar. Envelhecer é um fenómeno biológico irreversível e o abandono o caminho fácil, neste novo mundo desprovido de valores e imerso na falta de afetos.

O que faço, para onde vou ou o que me espera, mantenho gentilmente em frascos de ansiedade, cujo veneno é letal. Potes de amor, na eterna dúvida do Ser.

Imagem Interrogação https://pixabay.com/pt/illustrations/ponto-de-interroga%C3%A7%C3%A3o-pilha-2492009/

Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer

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