Tema #16 Osapo
Só estou bem aonde não estou …
O meu tio Jacinto reformou-se o ano passado.
A vida não foi lhe simpática. A escola correu por entre as horas vagas do campo. Primeiro o gado, as sementeiras e as colheitas, a feira semanal e tudo aquilo que quem fez do campo lar conhece. Só depois as letras e os números.
Os primeiros traumas chegaram com a guerra. Com 19 anos, Salazar acampado no poder, saiu da metrópole para viver a brutalidade da guerra nos solos e na humidade da Guiné. Deixou os pais em sobressalto e a namorada a rezar pelas noites dentro. Viu colegas a morrerem ao lado e acompanhou estropiados até ao barco que os trouxe de volta com o destino amarfalhado em nome da pátria, atraiçoados por algo que não sabiam bem o que era ou o que representava.
O regresso foi cruel. Vinha diferente, demasiado desconhecido. Até para ele. Ainda assim, a Rosa, muito receosa, não se escondeu e convenceu-o a construírem uma vida conjunta. Embora, por muitas vezes, se sentisse sozinha a lutar por sonhos que, nem sempre, eram de ambos.
A primeira filha, a Conceição, assistiu ao casamento alojada no ventre. Os outros apareceram com os invernos. Todos companheiros na travessia do tempo.
Empregou-se no comércio. As vidas dos clientes atenuavam-lhe os sonhos nas noites de pavor. Começou a esquecer-se. Apenas a rasgos recordava sons e cheiros e os sabores das africanas que muitos pensamentos e tremores lhe aliviaram pelas selvas distantes de Bissau.
Enquanto isso a Rosa suava numa fábrica têxtil, onde tecia panos em teares gastos. Os filhos secavam-lhe as dores enquanto atava os fios que se rompiam pela ação da lançadeira, ainda de madeira.
A sorte surgiu quando o Gervásio o desafiou a caminharem serras fora. Aprendeu uma língua diferente, numa profissão em que memorizou os gestos, afundado num buraco que não se distinguia do estábulo dos animais dos tempos de escola.
No verão seguinte fazia-se acompanhar pela Rosa e os filhos quando cruzou Vilar Formoso e olhou para trás.
Empenharam couro e suor, enquanto sonhavam numa barraca, mais uma num bidonville triste, algures nos arredores de Paris. Muitas noites deitaram-se com um caldo quente, depois de cozinharem para os filhos que os preocupavam pelos amigos a que se juntavam.
Aos poucos os suores retornaram silenciosamente pelo escuro. E, sem surpresas, soube que tinha que abalar.
O Inocêncio, num julho onde o fogo não deu descanso, trespassou-lhe o espaço. (1)
Foi o justificar do retorno ao ventre da mãe terra.
O percurso de operário da Peugeot a taberneiro foi célere, mas não foi fácil. Ainda assim, esforçou-se. Dedicou-se, envolveram-se todos, para que o arrependimento não se intrometesse nos seus silêncios. Por vezes apaziguadores. Muitas vezes não.
Com o negócio a correr melhor, a dar para mais do que a sopa, conseguiu fazer a vida um pouco mais meiga para os filhos. Mesmo que meiguice não tenha abundado pela sua pele e alma. Exceto quando as mulheres africanas, que frequentemente ainda lhe toldavam a imaginação, o faziam sonhar com as noites distantes mas sufocantes.
Nunca foi religioso até porque, tal como a pátria, não sabe bem o que isso representa. Deus, talvez demasiado ocupado, não se cruzou com ele. Ele, demasiado cansado, não se esforçou para o encontrar. Mas tirava um dia por ano para uma incursão a Fátima, onde incluía um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, uma doação nas esmolas e uma vela a queimar no velário que, por vezes, se assemelhava a um dragão a expelir fogo. Mais fumo que fogo, mas pronto. Não tinha a certeza se seria do leitão e do espumante tinto da Bairrada, mas o regresso era sempre melhor.
Mas, como tudo, cansou-se das semanas de 365 dias. Das longas noites que teimavam em repetir-se. Das refeições interrompidas e das sestas onde não se envolveu. Das festas que não comemorou. Das férias que reviu nas fotos dos outros. Dos anos que não sentiu o virar do calendário, dos escuteiros da freguesia, pendurado atrás do balcão de inox.
E também se fartou das malditas ambições que, com vontade própria, esticavam sempre que as alcançavam. Mesmo que a vida, ressentindo-se, não o sentisse ...
E, foi assim, que o meu tio Jacinto resolveu poisar a vida e as ambições em descanso. E aguardar (em pânico como se confessa nos seus silêncios cada vez mais frequentes) por algo ou alguém que o irá conduzir para onde o quiserem. De preferência sem dor. Ou pelo menos enquanto sonha com a macieza da pele quente de uma negra na sua, fria e excessivamente áspera.
Atenua o medo navegando, pela internet, a mais recente descoberta, pelo café, que já foi dele, ou pelas ruas empedradas, da vida que passam em sprint. Esquece os sonhos que não teve, arrastando os pés por caminhos que parecem não ter sentido ou direção, embaralhando as cartas com as mãos gastas à procura do ás de trunfo, saltitando entre imagens que não reconhece, umas e outras sempre com o olhar distante e perdido. Muitas vezes vazio.
Porque a vida não foi lhe simpática. A ele e a muitos outros.
Por causa de um desafio dos pássaros, que parece desesperadamente interminável, fi-lo refletir sobre o seu tempo e o seu espaço. Um silêncio depois disse-me com a voz subtilmente arrastada:
“Sou mais velho que o tempo e estendo-me para além do espaço que imaginamos!”.
E suspirando concluiu:
“Mas sei que só estou bem aonde não estou e só quero ir aonde não vou”.
E veio-me à memória o António que mora em cada um de nós ... (2)
Notas do sapo:
(1) Atingiram-se aqui as 400 palavras. A responsabilidade de continuar a ler este texto a partir daqui é exclusivamente sua. A gerência do espaço não se responsabiliza pelos danos que essa leitura adicional lhe possam causar, hoje ou no futuro
(2) https://www.youtube.com/watch?v=B_Ij425SMcA
Tema da semana: Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer
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